Pular para o conteúdo principal

"Viagra feminino" - o sintoma de uma sociedade doente

Finalmente chegou a solução milagrosa para a "falta de libido feminina", ela é rosa, vem em forma de cápsula e traz inúmeros efeitos colaterais. Não deve ser ingerida por mulheres com insuficiência hepática, nem junto com álcool e nem junto com a pílula anticoncepcional (outro problema sério, como pode-se ver aqui).

O que vem sendo vendido como uma conquista de igualdade para as mulheres - "se os homens têm direito a Viagra, por que as mulheres não têm?", dizem os jornais - é, na minha visão, uma excelente vitória da indústria farmacêutica, do mercado das patologias, em suma, de uma sociedade doente. Doente não só porque capitalista e cada vez mais desconectada da natureza (quem foi a pessoa louca que inventou a farmácia com tudo que a gente precisa pra ser saudável nascendo do chão?), mas porque obcecada com a doença, tudo é doença. A criança não consegue ficar 5 horas sentada em uma sala de aula e depois concentrar no inglês, no judô, no balé e na aula particular de matemática? Dá-lhe remédio pra déficit de atenção. A pessoa tem insônia tendo uma vida totalmente estressante? Dá-lhe remédio pra dormir. A mulher não sente mais o mesmo desejo sexual que sentia com 30 anos? Dá-lhe remédio para distúrbio de desejo sexual hipoativo generalizado adquirido (sim, é assim que chama, não inventei).

O efeito do flibanserin, , vulgarmente chamado de "Viagra feminino", no entanto, é muito diferente do Viagra masculino (que age na circulação sanguínea). A versão feminina, não por acaso, é muito mais agressiva e tem efeito neurológico, age direto nos neurotransmissores, como uma espécie de anti-depressivo. Além de todos os problemas propriamente biológicos, ainda abre espaço para comentários como o do repórter do Jornal Nacional, que disse que "sem  querer ser preconceituoso" - quando começa assim sempre vem bomba - "a versão feminina age no cérebro, diferentemente do Viagra masculino que tem efeito apenas físico". Como quem diz: o problema das mulheres é interno, intrínseco, quase uma inferioridade biológica.

Antropóloga que sou, desconfio muito de discursos científicos pretensamente neutros (e, obviamente, cheios de ideologia), mas nem pelos próprios parâmetros científicos esse remédio é defensável: segundo dados disponíveis no site do FDA sobre um teste clínico, as mulheres que fizeram uso do flibanserin "disseram ter tido, em média, 4,4 experiências sexuais satisfatórias em um mês contra 3,7 no grupo que consumiu placebo e 2,7 antes de iniciado o estudo". Isso significa que, antes do remédio, a média de relações sexuais satisfatórias por mês era de quase 3, com o placebo (remédio falso), subiu pra quase 4, e com o remédio efetivo, não chegou a 4,5.  Se o placebo fez um efeito tão próximo do remédio efetivo, isso é indício de um forte fator psicológico. E se a questão pode ser  psicologicamente tratada, para quê um remédio tão forte, com tantos danos? Eu respondo: para a indústria farmacêutica continuar ganhando rios de dinheiro e para não discutirmos seriamente o que está por trás da sexualidade (ou ausência de sexualidade) das mulheres, especialmente das mulheres de uma certa faixa-etária. Vai-se ao consultório, reclama-se de falta de libido e ao invés de todos os possíveis motivos serem investigados, sai-se com uma prescrição e pronto.

Assim como a pílula anticoncepcional, este é um comprimido que deve ser tomado todos os dias. É uma forma de domesticar o desejo, de biodominar o corpo, de padronizar o comportamento (ou o famoso "cagar regra"). Todo mundo sabe que a ciência ocidental é ainda um domínio masculino e serve aos interesses dos homens. Não há portanto, na minha visão, nada de feminista nesse medicamento. Preocupados estivessem com as mulheres, se engajariam em discussões de gênero.

Por que será que mulheres com tripla jornada (trabalho, casa, filhos), sofrendo diversas violências físicas e simbólicas diariamente (inclusive dos seus parceiros), tendo suas auto-estimas constantemente minadas por padrões inatingíveis de beleza não têm mais libido? Vamos mesmo chamar tudo isso de desequilíbrio hormonal, fechar os olhos e receitar um remedinho?
A receita para uma boa vida sexual (caso se queira ter uma) é uma mistura de inúmeros elementos, elementos sociais, psicológicos, culturais, biológicos e até espirituais, mas um medicamento neurológico não é um deles. Esse medicamento é só mais um sintoma de uma sociedade tão orgulhosamente doente, que cria as próprias doenças para ter o prazer de escamoteá-las (porque definitivamente não é de cura que estamos falando).

Que as mulheres consigam se libertar efetivamente do que as oprime, ao invés de se tornar escravas de mais uma milagrosa dominação. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Quantas feministas são necessárias pra trocar uma lâmpada? Ou sobre o riso dos outros.

Desde que me entendo por ser pensante, fui daquelas pessoas que discutem ou se retiram quando uma piada racista, sexista, homofóbica e etc. é contada. Sempre tive que ouvir, portanto, que não tenho “senso de humor”.   Eu, no entanto, adoro gente engraçada. Só tenho uma concepção bem diferente do que seja humor. E assistindo ao documentário "O Riso dos Outros" ( disponível aqui! ) vi que felizmente há vários humoristas que compartilham da mesma concepção e do filme tirei a inspiração para escrever esse texto.  Pra mim piada preconceituosa é humor fraco, fácil e, mais do que “politicamente incorreto”, politicamente ativo. Quando alguém faz piada pra rir de negro, de índio, de mulher, de gay, não está só contando uma piada, está endossando um discurso político. Isso porque, como explicou muito bem Alex Castro aqui , para uma piada ser engraçada, é fato, alguém tem que se foder, e a questão toda é: quem é que está se fodendo? Se é o negro, o índio, a mulher, o gay, então

Sheik volta atrás, Nanda continua depilada

Depois da polêmica que Nanda Costa causou por posar nua “sem estar depilada”, estando, no entanto, indubitavelmente depilada, mais um banho de machismo, homofobia e conservadorismo: o jogador Emerson Sheik, após o corajoso (infelizmente esse adjetivo ainda faz sentido nesse contexto) selinho no amigo, se “desculpa” por ter “ofendido os corinthianos” e termina com uma piadinha homofóbica, pra que ninguém duvide de sua macheza. A declaração foi precisamente esta: "Lamento se ofendi a torcida do Corinthians, não foi a minha intenção. Foi só uma brincadeira com um amigo, até porque eu não sou são-paulino" ( leia a notícia aqui ). Esses dois casos me chamaram particularmente a atenção por conseguirem expor o nível completamente absurdo (para não dizer surreal) de machismo, homofobia e intolerância da nossa sociedade. No primeiro, temos uma mulher que, mesmo estando depilada, causa polêmica por não estar. Sintoma de uma sociedade que impõe tantos procedimentos estéticos sobre

Vestir-se de “mulher” no carnaval: transgressão ou agressão?

Carnaval é bom pra pular, mas também é bom pra pensar. E a reflexão que faço esse ano, como feminista que sou, tem a ver com o tradicional costume dos homens de se vestir de “mulher” (como se o conceito pudesse ser tratado no singular) nessa época do ano. O que pensam esses homens? O que os motiva? De que “mulher” eles se vestem? Alguns argumentarão que vestir-se de mulher no Carnaval tem a ver com a inversão generalizada típica da festa. Homens machistas e homofóbicos que normalmente repudiam o feminino por medo de serem considerado homossexuais, nessa época do ano, têm a permissão de se travestir. Mas o que é que se inverte no fim das contas? Os homens não passam a ser as maiores vítimas de assédios e abusos sexuais, nem de violência doméstica, nem têm suas questões invisibilizadas, como acontece diariamente com as mulheres. As mulheres, por sua vez, não ganham o direito de andar com (ou sem) qualquer roupa sem ser incomodadas, nem de tirar a camisa por causa do calor, nem de ci