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O Vale do Jequitinhonha e o Bolsa Família


        Acabo de voltar de uma intensa e transformadora viagem no Vale do Jequitinhonha. Nós, pesquisadoras do NEPEM, visitamos quatro comunidades da área rural de Araçuaí e ouvimos mais de cem beneficiarias do Bolsa Família a fim de entender quais foram os impactos de dez anos do programa na vida das mulheres. Dentre as quatro comunidades, duas eram comunidades rurais, Alfredo Graça e Baixa Quente, uma era indígena, Cinta Vermelha Jundiba (fruto de um casamento Pankararu-Pataxó) e uma quilombola, Baú Santana.                                                                                                      
As histórias que ouvimos, as realidades que vimos, as experiências que vivenciamos mexeram muito comigo. E, mesmo longe de concluída a análise do vasto material que colhemos durante essa pesquisa (que visitou também outros municípios de Minas Gerais), já percebemos que o Bolsa Família é um divisor de águas na vida das populações pobres do país. Ouvimos relatos marcantes de mulheres que antes do benefício davam a seus filhos fubá com água, por não terem mais nada de comer. Ou o relato das(os) quilombolas, que antes do programa tinham renda zero. Ou de mulheres na faixa dos 50 anos que já estão muito adoecidas, sem condições de fazer trabalhos pesados, sem possibilidade de conseguir outros empregos e que ainda não podem se aposentar, cuja única renda são os 70 reais mensais do Bolsa Família.
Dona Lena, moradora de Alfredo Graça. [foto minha]
 Este texto não é nem propriamente um elogio, nem propriamente uma crítica aos governos de Lula e Dilma. Ou talvez seja os dois. O que vi no Vale foi uma mistura complexa de enormes avanços e absurdo abandono. Claro que é preciso fazer a ressalva de que a maior parte dos avanços é crédito do governo federal do PT e que a maior parte do abandono é responsabilidade do governo estadual do PSDB. Ressalva feita, há muito que o governo federal deveria ter feito e não fez. Para exemplificar essa complexidade, vou escrever com mais detalhes sobre a situação das duas comunidades que mais me marcaram: a aldeia Cinta Vermelha Jundiba e o quilombo do Baú.
A situação das comunidades indígenas e quilombolas no Brasil é alarmante. Enfrentam todos os tipos de violências de todos os lados, dos fazendeiros, da Polícia Militar, da burocracia e descaso estatais, dos vizinhos preconceituosos, etc. O caso da aldeia Pankararu-Pataxó é emblemático: os índios que residiam na região do Vale foram dizimados pela colonização, e os que restaram foram escravizados e/ou militarizados e foi feito lá um presídio indígena (por mais absurdo que isso pareça). Os Pankararu, originários do Estado de Pernambuco, vieram para o Vale em busca de familiares presos no presídio e, após um casamento com um Pataxó, quiseram permanecer na região. Buscaram a ajuda da Funai, que lavou as mãos, deixando-os sem seus direitos. Estes, sem alternativa, resolveram, com a ajuda de um crédito fundiário (que não conseguiram pagar até hoje), comprar uma terra para fazer sua aldeia. Esse é um exemplo claro da ambiguidade da atuação do governo federal: se, por um lado, o Bolsa Família é essencial para a sobrevivência dessas(es) indígenas, por outro temos uma situação absurda na qual indígenas, moradorxs originárixs das terras que vieram a ser o Brasil, têm hoje que comprar, com financialmento governamental, um pedacinho de terra pra reconstruírem suas aldeias.
O caso do Quilombo do Baú é igualmente estarrecedor. As(os) quilombolas estão lá há 300 anos e foram escravizadas(os) até a década de 1970 (!), trabalhando posteriormente em regime semi-escravo para os fazendeiros da região, que hoje se negam a empregá-las(os). Antes do primeiro mandato do PT, a comunidade sequer tinha o reconhecimento de quilombola, assim como não tinha luz, água, e praticamente nenhuma renda. Com o Bolsa Família, hoje as famílias beneficiarias conseguem comprar o básico e um pouquinho mais, o programa Luz para Todos levou a energia e o programa Água para Todos está começando o processo para levar a água (por enquanto eles têm que usar água escassa e suja, com sódio e ferrugem, já que o caminhão pipa que ia lá de tempos em tempos parou de ir). Transporte simplesmente não existe e, depois que a CEMIG desativou a balsa próxima ao quilombo, para ir a Araçuaí é preciso sair às 4h da manhã, andar 8 km (!) para pegar o único ônibus que sai às 7h da manhã. A Escola da comunidade tem uma única professora que dá aula desde o maternal até a quinta série, e depois da quinta série, não há mais escola. As ameaças dos fazendeiros da região são constantes e o Antônio, presidente da associação do quilombo, está ameaçado de morte por ter ousado lutar por direitos. Há somente uma assistente do CRAS que, de vez em quando, vai até lá e, segundo Antônio, ela só faz isso porque também é de uma comunidade quilombola, não fosse isso, a comunidade estaria totalmente abandonada. E, para piorar, apesar de terem já há dez anos o reconhecimento de quilombolas, o INCRA ainda não deu a titulação da terra para eles, e segundo funcionárias(os) do governo, a água só chegará quando a terra estiver no nome da comunidade.
Apesar de todo esse sofrimento, de tantas violências e preconceitos, as(os) indígenas e quilombolas protagonizam uma linda resistência e valorização de suas culturas, ao mesmo tempo que constroem novas noções de igualdades. Na Aldeia Cinta Larga, por exemplo, nos surpreendemos com um discurso expressivo de igualdade de gênero (até cartaz feminista vimos por lá). No Quilombo do Baú, fomos lindamente recebidas, e de modo particularmente carinhoso pelas crianças, que jogaram capoeira conosco, nos ensinaram danças e canções tradicionais e, ao final, anotaram o telefone de cada uma de nós (apesar de não haver sinal de celular na comunidade).
Com todas as críticas que tenho aos governos do PT (o genocídio indígena, o desrespeito intenso ao meio-ambiente, os despejos, repressões e violências da Copa do Mundo, para citar apenas algumas), é visível e inegável o processo de erradicação da miséria em curso no país. Se tem um aspecto do governo da Dilma que não pode ser criticado são os programas de enfrentamento a pobreza, e quem os critica, nunca foi ao Vale de Jequitinhonha. A visita ao Vale deveria ser currículo de todas as escolas e estágio obrigatório de qualquer pessoa que quisesse se candidatar a um cargo político. Voltei virada do avesso, mas eternamente grata às pessoas que conheci pelos muitos ensinamentos e exemplos de vida.

Comentários

  1. Yumi Garcia dos Santos1 de setembro de 2014 às 17:40

    Parabéns, Nathalia, pelo seu depoimento de campo! Do ponto de vista da formação acadêmica, essa experiência nos mostra como o trabalho de campo é fundamental para a consolidação do conhecimento e das críticas.
    Abraços, Yumi

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